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Rei da rua: quando a crítica social encontra a delicadeza

8MM – Rei da rua
(Independente – CD/2014)

Como incomoda ouvir Rei da rua, o novo CD do Oito Milímetros e como é bom ouvir Rei da rua, o novo CD do Oito Milímetros. Estranho? Mas é isso mesmo! Essa deliciosa contradição marca o retorno de uma das mais viscerais bandas da cena carioca. O incômodo se deve ao fato das músicas mexerem em nosso conforto, nosso senso comum e na falsa impressão de que tudo está no seu lugar. E são esses os mesmos motivos que fazem Rei da rua um CD bom de ouvir. Fundamental, diria.
O CD começa com “Briga de Galo”, que denuncia o bizarro entretenimento das rinhas de animais. Esse tipo de barbárie alimenta o duvidoso prazer de ver um dos rivais agonizar ensanguentado, às vezes até a morte. “Faça a sua parte, denuncie!”, nos convoca o vocalista Alemão. A segunda faixa é “Um lugar”, que tem um refrão joia demais: “Eu gosto de ver o nascer e o pôr do sol/ num lugar onde eu possa morar vivo andando nas ruas dessa cidade/ sem saber onde vou chegar”… É uma declaração de amor ao Brasil feita pelo inverso. Esbraveja indignação contra a miséria e a decadência de um sistema que insiste em nos recusar o que há de mais básico: uma vida simples no nosso lugar.
“Cadáver Cucaracha” é uma ácida ironia sobre um tema que vem marcando as pautas da imprensa no Brasil: os crimes violentos que ocorrem no âmbito familiar. A triste história da baratinha assassinada é contada nos moldes sensacionalistas desse sádico voyerismo jornalístico. Como na velha máxima do “se sangrar vira manchete”, os dramas domésticos se tornam aperitivos da agenda noticiosa e a coitada cucaracha é mais um desses petiscos. No arranjo, o hardcore dá lugar para uma levada jazz que logo cai para o punk-metal. Variações vertiginosas como a trilha sonora de um thriller barato (sem trocadilhos).
“Rei da Rua” dá título ao CD e traz as memórias do tempo em que se vivem as delícias da infância. Num momento em que as ruas passam a representar ameaça, hostilidade e medo, as lembranças dos pés descalços que erram o chute e perdem as unhas, do dedo cortado na linha de pipa, do corpo suado que corre sem camisa recuperam a imagem das ruas como espaço de sociabilidade. Uma época em que “era mais fácil ser criança”. A faixa “Pratique a paz” é um mantra! A mensagem é simples, e para ouvidos mais sensíveis chega a ser repetitiva, mas ela é mais que pertinente em um mundo ostensivamente ameaçado pela guerra. Repetir o óbvio se faz necessário: “Faça o que quiser não é nada demais/ Somente pratique a paz”. Pratiquemos todos.
“A ficha não cai” é uma das faixas mais delicadas do disco. Dedicada à memória de Alex Gralha, ex-baterista da banda, vítima da brutalidade do trânsito. A homenagem emociona mesmo aqueles que não conheceram o Alex. Nos últimos versos, a mensagem de esperança: “Já me disseram que é para não desanimar/Sei que vai estar no palco quando a festa começar!”. Para os amigos sempre há um lugar especial na vida, nos palcos, no coração. Bonito demais. Em “Preste atenção”, mais uma mensagem com forte carga subjetiva. “Quero te falar de mim/ Preste atenção”, diz o refrão. Os menos apressados que esperarem até o finalzinho da música vão se deliciar com o refrão à capela na doce voz da fofíssima Giulia, filhinha do Alemão.
“Soberba” é uma daquelas letras que tem o poder de falar para cada um de nós. Em algum momento da vida fazemos um balanço sobre nossos vícios e virtudes e, às vezes, as conclusões são lamentáveis: “vivi como um juiz, morrendo como um réu”, diz a letra. Cuidado com a soberba! Eis o recado. E quando parece que a viagem vai mergulhar no caldo da subjetividade, a verdade objetiva salta raivosa na sua cara. Essa é a mensagem de “Eu já conheço a verdade”, última faixa do álbum, uma porrada total. O papo é reto e deixa o recado: “Eu já conheço a verdade/ e é como faca penetrando no meu coração”.
Forte demais? Claro! É o Oito Milímetros em sua mais pura essência. Protesto e crítica, sem perder a delicadeza. Não dá para ficar parado. As músicas sacodem até mesmo os corpos e mentes mais sedentários. Por essas e outras repito: como incomoda ouvir Rei da rua, o novo CD do Oito Milímetros e como é bom ouvir Rei da rua, o novo CD do Oito Milímetros.

Por Roberto Azevedo

Deise Santos
Carioca, jornalista, produtora cultural, baixista e guia de turismo. Deise Santos é apaixonada por música - principalmente rock e suas vertentes -, literatura, fotografia, cinema, além de colecionadora - contida - de vinis. Pé no chão e cabeça nas nuvens definem a inquietude de quem está sempre querendo viajar, conhecer pessoas e culturas diferentes. Idealizadora do Revoluta desde seus ensaios com zines, blogs e informativos, a jornalista tem como característica a persistência em projetos que resolve abraçar.
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