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Farsa: punk e hardcore contestador de além-mar

Farsa é uma banda portuguesa com uma proposta ética e estética muito interessante: de um lado, suas letras refletem a alienação na pós-modernidade, deixando porém, um breve vislumbre de esperança. Do  outro lado, sua música é intensa, soturna e criativa. Abaixo, uma conversa com o vocalista Diogo.

Entrevista por Marcelo Fernandes
Fotos de divulgação

Onde e quando foi formada a banda?
Farsa formou-se em 2017, em Lisboa, mas não pertence a nenhum território ou cidade particular. Aquilo que nos juntou, para além da amizade, foi a partilha de uma insatisfação que é comum a quem vive em Portugal ou no Brasil.

Quem são os integrantes da banda? Alguém possui alguma banda paralela ao Farsa?
Farsa, neste momento, é composta pelo Bruno (baixo), Diogo (voz), Surya (guitarra) e Tiago (guitarra). Estamos sem baterista. Nenhum de nós possui outra banda ativa, apesar de haver alguns projetos a germinar. Para além disso, o Bruno é autor de uma fanzine chamada Âncora.

Ao ouvir pela primeira vez as músicas, e principalmente, ter contato com as letras, tive a impressão (talvez levado pelo clima soturno) que a banda fosse niilista, mas isso está bem longe da realidade! Poderiam explicar as visões políticas que movem a banda?
Não somos niilistas. Juntamo-nos, aliás, para procurar romper com a enorme maquinaria de desesperança que caracteriza este sistema e que alimenta esta sensação de fim que percorre o mundo. A crescente precariedade das vidas que habitam este planeta não é uma inevitabilidade. Não aceitamos tão pouco que a depressão, a angústia e a ansiedade que nos corroem a todos sejam uma condição individual, como se fossem culpa ou fraqueza nossa. Foi por reconhecermos que tudo isso é o resultado das relações de poder que nos rodeiam que nos juntamos e procuramos transformar numa revolta comum aquilo que nos obrigam a viver isoladamente. As nossas letras e o ambiente da banda resultam do reconhecimento desta condição e é natural que o expressem. Tudo o que fazemos é contagiado pelo ambiente sufocante que nos rodeia. Mas em momento algum procuramos expressar qualquer resignação. Quando escolhemos focar problemas aparentemente pessoais e que refletem, por exemplo, a degradação da nossa saúde mental, não foi para que nos enterrássemos mais num sentimento de impotência, mas sim para dizer que nada disso é dissociável de um processo político. Somos muito a partilhar os mesmos problemas e podemos ser um sujeito coletivo. Quando dizemos que “negamos tudo” estamos a reivindicar a mesma negação que caracterizou o nascimento do punk. É a negação de uma lógica hegemônica que subordina tudo ao mesmo padrão de maximização do interesse individual e que nos diz que outro mundo não é possível. Até podemos gritar que neste mundo “não há futuro”, mas se desejamos o fim do mundo é por ser urgente que surja um novo. Como alguém disse, parece “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. E nós não estamos confortáveis com isso. Não temos ilusões de grandeza, nem somos estúpidos: nunca ninguém em Farsa achou que íamos mudar o mundo. Mas sabemos que só por nos juntarmos e usarmos a nossa amizade para fazer algo juntos já estamos a criar uma forma de viver um outro mundo. Muito mais do que se nos fechássemos nas nossas bolhas.

Algumas de suas letras me remetem a desilusão com os caminhos que tomamos como sociedade: “Em cada jardim vazio descansa nossa solidão. Somos todos os momentos, que foram e não voltam mais.”. Ainda há espaço para sonhar e, mais do que isso, ainda é possível concretizar a grande utopia anarquista?
Esse trecho remete para esse sentimento de que falávamos na resposta anterior e que consideramos partilhar com o tempo que vivemos. Faz parte de uma música chamada “Nómadas” e, mais uma vez, expressa uma certa sensação mas não sugere conformismo, especialmente em conjugação com as outras letras. É antes o reflexo de uma insatisfação permanente, que pode empurrar-nos facilmente para o isolamento, mas reflete também uma recusa desse cinismo que nos tenta transformar a todos em “agentes” de um mercado e bloqueia a possibilidade de sonhar. Quando dizemos, na mesma letra, que “nada temos para vender” estamos, precisamente, a querer dizer que não nos deixamos prender nessa rede que reduz tudo a um mesmo valor e nos põe todos uns contra os outros. Posto isto, não creio que alguém na banda se considere anarquista ou acredite numa “grande utopia”. Acreditamos em muitas utopias. Mas cada um de nós é o resultado de muitas experiências, muitas ideias e muitas utopias diferentes – algumas que nós vivemos, outras que fazem parte do nosso imaginário histórico. É verdade que a nossa formação política se fez em boa parte pelo anarquismo, mas o anarquismo não encerra a multiplicidade de práticas autônomas, de ajuda mútua e anti-autoritárias que existiram e em que nos envolvemos. É no encontro de todas essas experiências que continuamos a alimentar o sonho e, mais do que a possibilidade, a necessidade de sonhar. Um mundo organizado noutros moldes não é apenas possível, é urgente. Basta ver como tudo se desmorona à nossa volta e reemergem as formas autoritárias do passado, intensificando, ainda mais, o que já fazia deste mundo um lugar de merda: a exploração do humano pelo humano sob qualquer pretexto arbitrário (pelo racismo, pelo sexismo, pela homofobia e pela transfobia, pela classe e pelo privilégio, pelo poder político, enfim, por todas as formas inventadas para negar a nossa igualdade).

Como anarquistas, como vocês avaliam o advento da Comunidade Europeia e suas crises inerentes? A globalização é boa para um projeto anarquista de grande escala, ou o Brexit trouxe alguma esperança de dias melhores?
Honestamente, a União Europeia nunca foi uma discussão entre nós, logo não sei se o balanço que cada um de nós faz é mais positivo ou mais negativo. Talvez, também, porque nascemos sob o advento dessa “comunidade”. A diluição dos nacionalismos para que esta procurou contribuir – e em que falhou – seria certamente positivo. Mas nunca nos moldes em que aconteceu, em que a “nação” foi substituída pelo “mercado” e manteve ou acentuou inúmeras formas de desigualdade. Chamar comunidade ao que existe é, aliás, perverso por isso mesmo e não é mais do que uma forma de mascarar todas estas desigualdades, como se fossemos parte de “uma coisa” e todos estivéssemos a remar para o mesmo lado. O Brexit é uma consequência do esboroar desta ficção “comunitária”, ainda que impulsionado por uma ficção semelhante que é o nacionalismo. Por isso o Brexit não trouxe qualquer esperança, antes pelo contrário, é o sintoma do crescimento dos autoritarismos e do nacionalismo.Tal como dissemos na primeira resposta, une-nos muito mais a nossa condição de explorados do que o fato de termos nascido num dado território. Temos muito mais em comum com a maior parte da população brasileira do que com qualquer capitalista nascido no mesmo país que nós. A globalização que desejamos e que vemos como boa para qualquer projeto de emancipação não é a globalização que só abre as fronteiras à livre circulação de mercadorias. Essa é a globalização das desigualdades e da exploração. A globalização que desejamos é aquela que abre as fronteiras à livre circulação de ideias e de pessoas. Qualquer coisa que continue a considerar que certas pessoas são “ilegais” ou que certas vidas são menos importantes do que outras não é globalização, é uma mentira. 

Como uma banda que possui uma proposta  política definida, como vocês avaliam a utilização de uma banda como ferramenta de disseminação de informações que consideram pertinentes?
Todos nós crescemos na “cena” punk-hardcore, um meio que para nós nunca fez sentido senão enquanto expressão de uma certa revolta e descontentamento. Fomos atraídos para essa cultura precisamente porque não queríamos ir para onde o mundo nos levava, porque nos sentíamos desencaixados e perdidos. Se não fosse o punk-hardcore seríamos, certamente, pessoas muito diferentes. Tal como seríamos pessoas diferentes se só tivéssemos ouvido fado ou samba. Por isso mesmo sabemos que qualquer estilo musical transmite uma mensagem e é muito mais do que apenas música. Nós escolhemos uma mensagem de revolta em vez de uma mensagem de conformação. Falamos de amor e de amizade, mas sabemos que a forma como vivemos cada uma dessas coisas é política e não se separa das condições que nos rodeiam. Remetendo para o que já dissemos atrás, foi pelo punk-hardcore que descobrimos bandas como Colligere ou Point of no Return e que tínhamos mais em comum com algumas pessoas que vivem do outro lado do Atlântico do que com algumas pessoas que cresceram ao nosso lado. A música, as letras mas, também, a mentalidade “do it yourself” mostraram-nos que podemos fazer as coisas de maneira diferente e que não temos que aceitar apenas o que nos dão ou fazer apenas o que nos permitem. Mesmo que tivéssemos sido nós os quatro a sentir isso, já seria o suficiente para reconhecer que o privilégio de estar num palco não serve só os nossos egos. Pode servir, também, para iniciar um diálogo e transformar quem nos ouve.

“No trabalho, com o tempo inútil, morto, que damos quando obedecemos a homens e palavras que nos fazem ninguém, cometemos suicídio. Cometemos suicídio todos os dias.”. Apesar de extremamente alienante (e talvez exatamente por isso!), o trabalho ocupa uma posição central na vida moderna. Como escapar a essa força que nos traga e condena a uma existência sem sentido?
O “trabalho ” é um dos grandes mitos contemporâneos. Existe porque tudo na vida se tornou uma mercadoria, um bem com um preço, e suportamo-lo, como se fosse uma inevitabilidade da natureza, porque o trabalho se tornou a única forma de obter o dinheiro que nos permite pagar esse preço. Em troca de dinheiro fazemos qualquer coisa – mesmo que não lhe reconheçamos outro valor ou utilidade que não o de “pagar as contas” – e chamamos a isso trabalho. É uma abstração que significa apenas trocar o nosso tempo e o nosso saber por um valor. Mesmo quando o desemprego cresce, mesmo quando a maioria dos empregos que existem não servem para nos fazer sentir produtivos, úteis ou para assegurar uma condição de vida digna, continuamos a tomá-lo como sinônimo de “estar ativo”, “ser útil” ou como condição inevitável para viver. Continuamos a fazer depender a nossa vida do trabalho – a não ser que sejamos uns privilegiados. Parafraseando Raoul Vaneigem, não acreditamos num mundo “no qual a garantia de não morrer de fome se troca pelo risco de morrer de tédio”. Nós, em Farsa, sentimo-nos produtivos quando nos encontramos para fazer música, escrever letras ou para conversar e conviver. É isso que nos faz sentir vivos. A maior parte dos nossos dias é desperdiçada a tentar assegurar que podemos fazer de vez em quando aquilo de que gostamos realmente. Chamamos a esses momentos “tempo livre”, mas é um tempo que é tudo menos livre, pois depende inteiramente do trabalho e do tempo que dele sobra. Cremos aliás que esses momentos em que respiramos melhor só nos são concedidos para que possamos recuperar forças e continuar a ser “produtivos”. Agora, isto não significa que todos estejamos descontentes com aquilo que fazemos. Alguns de nós têm a sorte de fazer profissionalmente aquilo de que gostam. Também não confundimos “trabalho” – a abstração – com atividade e criação. Mas em caso algum a utilidade ou o valor do que fazemos – para nós ou para a sociedade em vivemos – é redutível ao que alguém decide pagar por isso.

Portugal possui um governo dito progressista, se comparado ao protofascismo e ao neofascismo de países como Polônia, Hungria, Áustria, Brasil e etc.. Esse fato tende a desmobilizar grupos comprometidos com uma transformação radical da sociedade ou significa um “chamado à ação”?
Esse governo dito progressista vem de uma crise financeira que serviu de pretexto para desmantelar o Estado social e privatizar tudo (a saúde, a educação e muitos outros bens e serviços que foram criados após a revolução de 25 de Abril de 1974). Nesses anos, em especial entre 2008 e entre 2015, as condições de vida da maioria daqueles que habitavam em Portugal degradaram-se intensamente. O descontentamento social, nesse período de crise, cresceu mas nunca se traduziu em nenhum projeto de transformação radical em larga escala. O governo atual estancou o processo de destruição em curso, com a colaboração de outros partidos de esquerda dita “radical”, mas não o parou. Com isso ressurgiu um certo clima de esperança e de expectativa que teve, precisamente, o efeito que apontas: desmobilizou as ruas quando devia ter “chamado à ação”. Apesar de haver profundas diferenças com o que se passa no Brasil, este governo não abandonou o projeto neoliberal que se vinha desenrolando. Apenas seguiu o caminho de o gerir de outra forma. Nos últimos anos voltou a crescer um certo descontentamento nas ruas, aumentaram as greves e as manifestações, até porque a recuperação econômica que o exercício deste governo permitiu não se traduziu nas condições de vida da maioria das pessoas.  Continua a servir os mesmos interesses, as mesmas elites e a reproduzir as mesmas desigualdades. Além disso, Portugal não é imune à ascensão da extrema-direita a que se assiste em todo o mundo. Em 2019 entrou para o parlamento um partido fascista que não tem parado de crescer nas sondagens, partido esse que tem relações com Bolsonaro. Portugal sempre foi um país racista, sexista e extremamente desigual e estas forças têm aprendido a capitalizar esses sentimentos com o exemplo do que vem acontecendo no Brasil e nos EUA, dividindo as populações, exacerbando sentimentos nacionalistas e afirmando combater a corrupção ou os interesses instalados. Os tempos que se avizinham são bastante imprevisíveis, especialmente com o crescimento das desigualdades que a atual pandemia trouxe.

A cena Punk/Hardcore portuguesa tem uma história longa e, me parece, está sempre se renovando. Quais bandas vocês poderiam indicar como relevantes atualmente?
A cena punk-hardcore portuguesa tem de fato uma história longa e está sempre em renovação. Nós entramos na “cena” num período em que esta estava particularmente ativa, com muitas bandas e muitos concertos. Foi, além disso, um período em que a “cena” era muito politizada. Entretanto ocorreram muitas mudanças. Como em todo o lado, houve muita gente que se afastou e houve muita gente nova a aparecer. Atualmente parece-nos que estão a surgir novamente mais bandas, mas a “cena” encontra-se muito fragmentada. Entretanto ressurgiu uma banda oldschool vegan straightedge, os xAIMx, o que já não existia há muito tempo. O anterior baterista de xAIMx tem, também, um projeto de hip hop vegan straight edge, chamado GAEA. Para além disso, gostamos bastante dos Sharp Knives, uma banda de folk-punk, os BAS ROTTEN, uma máquina de demolição punk-grind-thrash e Scúru Fitchádu, que misturam música de Cabo Verde com punk! Mas como a “cena” não se faz só de bandas, não podíamos deixar de referir aquele que é um dos espaços mais interessantes em Lisboa atualmente: a Disgraça. É um centro social auto-gestionado onde acontecem a maioria dos concertos punk na cidade e onde há, além disso, uma cantina que serve refeições vegan. Neste período da pandemia, a cantina dedicou-se exclusivamente a servir refeições gratuitas aos sem-teto.

Agradeço o tempo de vocês e deixo o espaço aberto para teus últimos comentários:
Nós é que agradecemos o vosso interesse. Acompanhamos a situação no Brasil com preocupação e, apesar de termos um oceano pelo meio, estamos juntos com todos aqueles que lutam contra um presidente criminoso e sofrem diariamente com o ódio que espalha. Esperamos que em breve possamos continuar esta conversa pessoalmente, seja em Portugal ou no Brasil. Quem sabe se um dia o Brasil não nos chama para fazer uma tour ou dar uns concertos por aí – e ajudar a derrubar o Bolsonaro e seus bolsominions. Marielle vive!

Para conhecer a banda:

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Para ouvir:

Bandcamp

Marcelo Fernandes
Professor de Geografia na rede estadual do RJ e faz parte das bandas Solstício, Las Calles e Bulldog Club.
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