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Música subversiva anticolonialista

A postura anticolonialista da banda de black/death metal Hereticae, de Londrina (PR), fica clara nesse bate-papo intenso com Dalton, vocalista e guitarrista da banda.
Entre vários assuntos e reflexões, Dalton fala sobre a formação da banda, as influências sonoras e as questões políticas e sociais que abordam em suas composições, além dos planos pós-pandemia.
Confira!

Entrevista por Marcelo Fernandes
Fotos por Dayane Alves, Letícia Pettinari e Lucas Klepa


Como surgiu a banda? Vocês tiveram projetos anteriores a Hereticae?
Salve! Quero agradecer de antemão pelo espaço para essa troca de ideias, valeu mesmo pelo convite.
A banda teve seu início propriamente dito em 2015, comigo (Dalton) na guitarra e vocal, Cristiano no baixo e Igor na bateria. No entanto, Cristiano e eu tínhamos esse projeto de formar uma banda desde os idos de nossos 13 anos, quando começamos a entrar em contato com o metal. Somos vizinhos e amigos desde os 11, então crescemos ouvindo som juntos, sempre com um descobrindo uma coisa nova e passando para o outro. Mas foi somente com 17 anos que conhecemos o Igor e o chamamos para fazer uma apresentação no show de talentos da escola que estudávamos, ao final de 2014; de lá para cá, não paramos mais com a banda.

A sonoridade Black/Death Metal foi um caminho natural para vocês? Que bandas dentro desses estilos influenciaram vocês de alguma forma?
Creio que posso dizer que sim. Como disse, Cristiano e eu começamos a ouvir som juntos, e começamos mais na linha do Thrash. Particularmente posso dizer que Megadeth é a banda do meu coração até hoje. Com o passar do tempo fomos conhecendo as demais vertentes do metal, assim como conhecendo mais gente que curtia o mesmo som e foram nos apresentando mais bandas – até nos depararmos com o Death e com o Black Metal e suas vertentes. Os medalhões desses gêneros foram peças-chave no nosso caminho enquanto banda. Para citar exemplos, bandas como Behemoth, Mayhem, Sarcófago, Venom, Gorgoroth, Thy Light, Cannibal Corpse, Nile,entre outras. 

Vocês têm uma interessantíssima proposta de abordar o que fazem dentro de uma perspectiva decolonial, isto é, questionando os discursos históricos hegemônicos, o que torna as letras da banda muito diferentes, questionadoras de mitos do passado e do presente. O que vocês querem alcançar com suas letras?
Entendo a música subversiva como um campo de disputa política: ou você ignora esse fato consumindo e produzindo música acriticamente da mesma maneira de uma dupla de sertanejo universitário qualquer, ou você o encara como tal. Nosso trabalho aqui, para seguir a melhor linha de Hermes e Renato, é tirar o jovem do seio do eurocentrismo e colocar na teta latino-americana.
É inevitável: nós, da subcultura do metal, crescemos ouvindo os medalhões como os que já citei aqui (salvo as exceções, claro). Acontece que isso é um sintoma do colonialismo, no sentido de que nós, enquanto pessoas brasileiras, crescemos envoltas por músicas em inglês, que falam dos problemas, histórias e memórias do hemisfério norte que muitas vezes pouco tem a ver com a gente. Mais do que isso, vemos passar na TV de tempos em tempos o maior festival de rock do mundo, que acontece em solo brasileiro, e as atrações principais não são outras senão os mesmos medalhões da gringa. Com a exceção do Sepultura (que, inclusive, é tido pela grande mídia como se fosse a única banda de metal do país). Isso tudo não é por acaso, mas não precisa ser assim.
O objetivo de nosso álbum, Ecos do Atlântico, é chamar a atenção para o que há do nosso lado da história. É nos situar enquanto herdeiros de um país construído sobre o maior genocídio da história da humanidade – o dos povos indígenas –. Construído, é claro, pelas mãos de seres humanos escravizados da África, cujos descendentes sofrem nas periferias de nosso sistema ainda hoje.
É, sobretudo, um pedido para que olhemos para nós, latino-americanos, como frutos da maior desgraça que a cristandade e o capitalismo, sob a bandeira do colonialismo, puderam produzir.

Em “Antipátria”, vocês dizem: “Meus heróis não receberam a santa Graça do divino, pois morreram lutando contra os agraciados”. Quem são esses heróis? Como eles podem nos ajudar a construir um novo caminho na história?
Esse verso foi cunhado de uma cena da animação brasileira “Uma História de Amor e Fúria” (que recomendo aos que leem esta entrevista assistirem imediatamente). Na animação, o herói – um espírito de um guerreiro indígena que transcende no tempo através de episódios da história do Brasil – diz: “Meus heróis não viraram estátua, morreram lutando contra aqueles que viraram”. É uma referência direta aos indígenas e aos negros escravizados que morreram lutando contra os nomes que hoje estão nas principais estradas e edifícios do país. Esse é mais um sintoma de nossa mentalidade colonizada e de nossa memória apagada pelos séculos: um continente como a América do Sul se permitir a ter avenidas chamadas “Bandeirantes”, é a mesma coisa de, em Israel, nomearem uma avenida de “Schutzstaffel” (“SS”, a organização paramilitar de Hitler). Mas (quase) ninguém fala disso, mesmo após o movimento Black Lives Matter começar a derrubar estátuas de escravocratas por aí.
Respondendo às perguntas: esses heróis não têm nomes, pois eles sequer têm túmulos. Eles morreram pelas mãos dos que acreditam ser o povo santo. Podemos citar alguns que conquistaram o seu lugar na História ocidental, como Zumbi dos Palmares e mesmo Tupac Amaru II (a quem homenageamos na faixa “Tupamara”), mas acreditar que eles são o suficiente para nomear os milhões de seres humanos escravizados e mortos na história do continente americano é um equívoco que não podemos cometer.
Por fim, acredito que o único caminho que podemos construir em nossa história rumo à um continente americano livre das mazelas da colonialidade é lembrando que cada canto em que pisamos deste lado do Atlântico é terra indígena, e devemos respeitá-la como tal.

Na opinião de vocês, o rock em suas vertentes que se propõem contraculturais, mais reproduz ou mais questiona a visão do “vencedor da história” que é homem, branco, heterossexual e cristão?
Difícil responder. Eu diria que o hardcore e o rap particularmente estão anos-luz à frente do rock nesse sentido.  No entanto, vejo que existe hoje um verdadeiro divisor de águas em nosso gênero. O mundo está passando por fenômenos sociais profundos; há aqueles que lutam por mudanças, e há aqueles que se opõem a elas. Dentro do mainstream podemos contar com nomes como Roger Waters e bandas como Rage Against The Machine e Kreator que convergem com as urgências de nosso tempo; assim como podemos encontrar artistas que outrora gritaram “God Hates Us All” defendendo fundamentalistas cristãos.
Dentro do Black Metal a coisa fica ainda mais esquisita. Temos aqui um movimento que partiu de uma molecada insatisfeita com os valores cristãos do norte da Europa, que, bem colocado por eles, demoliram templos pagãos para construir igrejas em cima. Até aí, beleza; é mais ou menos o que fazemos por aqui também. Mas, ao mesmo tempo, isso fomentou um puta sentimento nacionalista que, em muitos casos, desembocou em ideologias fascistas, criando um próprio subgênero voltado só pra isso – como todos devem saber, o National-Socialist Black Metal. Em contraponto a isso, temos hoje um sério movimento dentro do Black Metal que vai absolutamente contra isso, no Brasil e no mundo. Portanto, como dito, é difícil responder essa pergunta, então vou ficar que nem o típico brasileiro-médio nessa: em cima do muro (risos).

Superar o cristianismo é um ponto fundamental para libertar o ser humano? Por que?
Creio que sim, mas pretendo ir além. Partindo da concepção paternalista-hierárquica do cristianismo, onde Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, é impossível conceber a existência dessa religião sem a relação vertical da autoridade. Ainda, há de se lembrar que o protestantismo deus as bases do “espírito” do capitalismo; e por isso mesmo não podemos nos ater à ideia de que apenas o fim do cristianismo nos levará à um mundo mais horizontal e justo. A igreja não tem hoje o poder que possuía há três séculos; sua existência enquanto instituição está condicionada a um deus muito mais universal e onipresente do que o próprio Javé: o capital. O cristianismo só pode ser realmente superado se for em conjunto com esse novo deus. Enquanto uma das cabeças dessa quimera ideológica existir, deveremos enfrentá-la sob a pena de sermos devorados por ela cedo ou tarde.

Voltando a falar de música, quais bandas brasileiras vocês indicariam para que nossas leitoras e leitores conhecessem?
Começando por citar bandas que seguem mais ou menos a mesma linha musical e ideológica que nós, indico a Vazio, Black Metal de São Paulo-SP, onde em seu primeiro álbum, “Eterno Aeon Obscuro”, bradam pela memória de nossos ancestrais através de uma junção do Black Metal clássico com sonoridades tribais de matriz indígena e afro-brasileiras.  Indico também a Pessimista, one-man band de DSBM do interior de São Paulo, que procura denunciar as chagas de nosso sistema como a verdadeira causa do mal de nosso tempo: as doenças psicológicas. Voltando à cidade de São Paulo, indico a Imminent Doom, que traz um Black/Thrash com vocal feminino e teor abertamente antifascista, e a Xico Picadinho, que faz um Black/Grind aos moldes de Anaal Nathrak absolutamente visceral. Para além da pegada de som abertamente antifascista/anticolonialista, cito a Inverted Cross Cult, da região de Sorocaba, que faz um Sludge/Doomabsolutamente mórbido e único, e a Talrak, também de Sorocaba, que faz um Black Metal com forte influência do Death Metal Melódico e do Prog.
Cito, claro, as bandas da região de Londrina que abraçam a causa com a gente e fazem tudo que está ao seu alcance para fazer a cena acontecer aqui no norte do Paraná. Entre elas, a Guro, que faz o Grindcore mais esquisito que o mundo já viu, combinando blastbeats, tempos quebrados e vocal rasgado aos moldes de Black Metal. Indico a Enslaver, banda de nosso baterista Francisco, que faz um Thrash/Death coroado por forte influência Cavalerística dos velhos tempos. Indico a Acid Brigade, que forjou o melhor disco de Thrash Metal oitentista desde que os anos oitenta acabaram. Indico a Sangrano, de longe uma das minhas bandas favoritas da vida, que simplesmente faz o rolê inteiro sair na pancadaria durante seus shows aos berros de “pau no cu dos Estados Unidos” – sério, é uma coisa mágica de se ver. Cito a Terrorsphere, que faz um Death Metal Old School sinistro aqui nas terras vermelhas. E por último, mas não menos importante, indico a Christophobia, banda já findada de Black Metal numa pegada oldschool. A lista poderia ir longe, pois a cena brasileira é vasta e riquíssima, mas me abstenho por aqui para não cansar (tanto) o leitor. O que importa é que todas essas bandas estão no corre do dia-a-dia do underground, sabem como fazer e valorizar a música subversiva, e tem minha mais profunda consideração.

Quais os planos da banda para os dias pós-pandemia?
Muitos, embora seja impossível de saber quando serão concretizados. Por ora, melhor deixar essas coisas entre nós.

Muito obrigado, Hereticae, por essa entrevista. Deixo aqui o espaço aberto para suas considerações finais:
Eu agradeço imensamente, em nome da Hereticae, pelo espaço de troca de ideias, e principalmente pela paciência de quem leu até aqui – afinal, eu não sei economizar as palavras (risos). Convido a todos e todas a assistirem ao festival online Underground Extremo que irá ao ar no Youtube dia 26 e 27 de dezembro, onde lançaremos nosso mais novo clipe, da faixa “A Cruz e a Águia”, produzido em conjunto com o selo/produtora Garage Tapes de SP.
Aproveito também para avisar que em alguns dias estará disponível a versão em digipack de nosso álbum. E sobretudo, peço encarecidamente que deem uma atenção especial às bandas citadas acima, pois são trabalhos que PRECISAM ser divulgados e conhecidos.

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Formação da banda:

Dalton Santana – Vocal, guitarras
Cleverson W. França – Guitarras
Cristiano Obuti – Baixo
Francisco Vitor – Bateria

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Para conhecer e acompanhar:

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Instagram

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Para ouvir:

Marcelo Fernandes
Professor de Geografia na rede estadual do RJ e faz parte das bandas Solstício, Las Calles e Bulldog Club.
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