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Esfera Pública Contra-Cultural

Por Augusto Jr. *

…………Caríssimos e caríssimas, gostaria de tentar esboçar neste texto a forma pela qual interpreto e enxergo o meio underground, melhor dizendo, a esfera de sociabilidade na qual se formam redes comunicativas entre headbangers, punks, hippies, rappers, etc., devido à liberdade que me é dada neste espaço procurarei articular minha vivência acadêmica (enquanto estudante e pesquisador) com minha vivencia contra-cultural (enquanto guitarrista de uma banda de punk rock). Num primeiro momento esboçarei o conceito de Esfera Pública, construído por um dos mais célebres pensadores de nossa contemporaneidade: Jürgen Habermas. E por fim, a guisa de conclusão, procurarei demonstrar a minha forma de enxergar o meio underground emprestando o arcabouço teórico de Habermas, o qual creio ser de muita utilidade para este propósito.
…………Pois bem, vamos primeiramente à teoria. Jürgen Habermas desenvolveu suas considerações a partir da sua tese doutoral na qual analisa o surgimento de uma Esfera Pública burguesa na França, Alemanha e Inglaterra dos séculos XVIII e XIX. Esta esfera pública era caracterizada pela discussão livre de assuntos de interesse coletivo sendo que os Cafés, Pub’s e Salões eram as instituições deste mundo em que as pessoas “estranhas entre si” conversavam em pé de igualdade, como sujeitos livres e autônomos. Ao evocar a noção de esfera pública Habermas aponta para uma dimensão normativa da democracia que revela a necessidade de sujeitos críticos, capazes de fazer uso público da razão, numa sociedade de ideal iluminista. Ou seja, numa democracia entendida enquanto organização política de dominação consentida, as decisões precisam ser permanentemente justificadas e fundamentadas (COSTA, 1995).
…………Por esta perspectiva, podemos pensar o conceito de esfera pública como domínio daquilo que se pode falar sem reservas, uma arena pública e lócus de discussão e interação social. Cabe ressaltar que em seu primeiro momento ela se destaca pela crítica e consumo de obras artísticas e bens culturais, porém gradativamente a esfera pública burguesa literária adquire conotação e função política. Assim, tal noção diz respeito a um contexto difuso de relações no qual se concretizam e se condensam intercâmbios comunicativos gerados em diferentes campos da vida social. Esse contexto comunicativo constitui uma arena para a observação da maneira como as transformações sociais se processam, como o poder político se configura e como os atores da sociedade conquistam relevância na política contemporânea (AVRITZER & COSTA, 2004). O cientista político Wilson Gomes (2006) coloca o conceito habermasiano como uma condição de vida social na qual podemos tratar de idéias e assuntos de forma aberta, acessível, opondo-se àquilo que é ocluso e fechado. Ou seja, trata-se de uma conversação pública sobre cultura e política tal como ocorreu na sociedade burguesa em seus espaços de sociabilidade (os cafés, bares e salões). Evidencia-se uma relação entre a sociedade civil e a sociedade política, ou melhor, do controle cognitivo das relações sociais comunicativas sobre a esfera decisora da política.
…………Entretanto, a obra de Habermas (1962) aponta que a esfera pública burguesa dos séculos XIII e XIX acabou por ser “re-feudalizada” pelas técnicas de publicidade, no sentido de relações públicas, culminando na formatação e construção de um “público” acrítico, isto é, de aclamação e de uma opinião pública que se forma a partir de um consenso fabricado. Tal fato ocorreu devido a sua ampliação na qual adentraram os meios de comunicação de massa que tornaram os debates estilizados em forma de “show”. A razão crítica cultural e artística cedeu espaço para uma publicidade de função somente demonstrativa. Essa colonização provocada pelo mercado da publicidade comercial e pela razão instrumental do Estado retirou o livre debate de idéias e privilegiou a aclamação do “público” espectador (HABERMAS, 1962).
…………Contudo, a teoria habermasiana revela poder explicativo para alguns pesquisadores que aprofundaram o conceito de esfera pública e procuraram demonstrar que, mesmo sendo colonizada pelo mercado publicitário e pela razão instrumental, ela pode surgir em diferentes contextos e em diferentes formas de comunicação cultural. Desta forma, Cohen e Arato (1992) apresentam a noção de New Publics que reza que ao lado do crescimento da grande mídia e da penetração da cultura pelas lógicas do poder e consumo, há um processo de desprovincialização e modernização do mundo cotidiano dos atores sociais, ou seja, a criação e expansão de novos locais de comunicação crítica (subculturas, movimentos sociais, microespaços alternativos, etc..). Tais espaços são meios culturais de circulação de idéias e formas de vida pós-tradicionais que trazem inovação cultural e contestação dos padrões sociais, tal como o meio underground. Estes new publics pressionam por mudanças no padrão de comunicação pública e podem alterar a política institucionalizada e os paradigmas da sociedade. Assim, de uma esfera pública de núcleo fechado passamos para uma pluralidade de públicos alternativos que revivificam os processos e a qualidade da comunicação cultural e política. Outra autora relevante que utiliza o instrumental analítico de Habermas é Nancy Fraser, que constrói o conceito de Subaltern Counterpublics. Para a autora uma esfera pública única não considera as relações assimétricas de poder que marcam os processos de constituição das esferas públicas contemporâneas. O surgimento de Contra-públicos Subalternos (minorias étnicas, grupos discriminados, mulheres, etc.) denunciam os “vícios de origem” dos espaços públicos e constituem forças de democratização e ampliação política (AVRITZER e COSTA, 2004).
…………A esta altura do texto, você deve estar se perguntando o que todos esses conceitos têm a ver com o meio underground. As palavras ditas acima seriam apenas proselitismo acadêmico? Pois bem, a fim de começar a encaminhar o fim deste texto afirmo que aquilo que proponho a partir destes conceitos da Ciência Política e Sociologia é um debate a respeito do papel que o nosso meio – o meio underground – pode exercer na sociedade. Sem exageros, afirmo que formamos e fazemos parte de um tipo esfera pública (New Publics ou Subaltern Counterpublics), o que resta saber é se conseguimos fazer dela uma esfera pública com funções sociais e políticas. É importante reafirmar e relembrar, para a construção do meu argumento, que na sociedade burguesa dos séculos XVIII e XIX a esfera pública se constituiu primeiramente com funções culturais, de debates a respeito de peças teatrais, concertos musicais, obras de arte, etc. Havia entre os agentes daquela época uma solidariedade perante a publicização da subjetividade artística. Por meio da crítica artística o uso público da razão foi num primeiro momento destinado à esfera pública literária, que gradativamente deslocou seu foco para a política e para as questões sociais, tornando-se uma esfera pública política. É pouco provável que os burgueses daquela época tivessem a consciência daquilo que estavam construindo. Porém, o legado desta sociedade nos mostra hoje que é inegável que o nosso envolvimento com a arte e a cultura desperta-nos uma consciência crítica. Freqüentar atmosferas culturais (ou contra-culturais), seja ela um show musical, uma peça teatral, uma exposição fotográfica, etc., faz com que conheçamos sentimentos e visões de mundo diferentes, e muitas vezes, conflitantes com aquelas as quais fomos socializados. Isto é, o contato com a arte amplia nossa capacidade reflexiva e cognitiva. Uma esfera pública cultural desempenha, querendo ou não, conscientemente ou não, funções políticas e sociais e é essa a conexão que procuro fazer entre o conceito de Jürgen Habermas e o meio contra-cultural.
…………Deste modo, convido-os a fazer um exercício de abstração e transportar a noção de esfera pública para a atmosfera underground, na qual os sons das bandas de rock, dos rappers, os estúdios de tatuagens, os blogs, os bares, os fanzines, etc. são formas e espaços de sociabilidade em que interagimos, trocamos idéias e, acima de tudo, formamos opiniões (inclusive as nossas). Nossas redes de interações sociais também são (ou pelo menos deviam ser) capazes de gerar debates e discussões fundamentais que se encontram no seio da nossa sociedade e assim criar impulsos comunicativos alterando paradigmas, modos de comportamento, preconceitos e decisões políticas. Vamos pegar um exemplo: os movimentos Hippie e Punk a partir das suas músicas de contestação e estilo comportamental construíram um intercâmbio contra-cultural comunicativo (uma esfera pública contra-cultural) entre a juventude das suas respectivas épocas, estabelecendo laços de solidariedade devido ao mútuo reconhecimento entre si da realidade e dos problemas sócio-políticos que os cercavam, e que lhes eram comuns. Tais movimentos mudaram não apenas a história do rock, mas a própria história da sociedade. Pois, tal como ocorreu com a esfera pública do século XVIII e XIX, estes movimentos sociais que nascem a partir da arte adquirem, em maior ou menor medida, funções políticas de extrema relevância. Ou seja, os dizeres Flower Power (poder das flores) e Do it Yourself (faça você mesmo) não são apenas slogans sem sentido. Tomemos agora outro exemplo: sabendo que as decisões governamentais devem passar por um processo de discussão pública, qual o destino de uma política pública direcionada à juventude ou ao incentivo à cultura nas quais os mais afetados e supostamente interessados por elas são sujeitos que não possuem a clareza crítica de sua existência e papel social? Não é necessário raciocinar muito para responder essa questão, que obviamente nos revela um fim trágico. Temos responsabilidades com nossa rebeldia meus caros, aliás, muitas!
…………Nosso desafio está em termos em mente a consciência de que nossas músicas, poesias, pinturas, fotografias, grafite, etc., transparecem uma subjetividade que não é somente nossa, ao contrário, são reconhecidas em nossos iguais e que a partir disto formam-se redes sociais, influxos comunicativos, formação de opiniões e identidades coletivas. Desta forma, nosso espaço de sociabilidade, ou melhor, nossa esfera pública underground, também é formadora de opinião pública. O que nos resta fazer é assumir essa responsabilidade cidadã de utilizar os instrumentos que nos são dados, nossa arte contra-cultural, com muita responsabilidade e com um mínimo de consciência crítica. Somos agentes políticos numa arena de conflitos sociais na qual há sempre visões de mundo dominantes procurando nos impor um tipo de opinião pública de consenso fabricado, de “aclamação” do público tido como espectador e não de discussão e deliberação.
…………Caríssimos e caríssimas, encerro este texto com uma provocação: que tipo de agentes sociais e políticos do meio underground queremos/devemos ser? Pegando emprestado a genialidade de Stanley Kubrick, somos “laranjas mecânicas” controladas, manipuladas e reféns dos processos de racionalização instrumental do Estado e da comercialização publicitária do mercado? Ou, somos/podemos ser sujeitos que fazem uso público da razão, cientes de que as representações de mundo incorporadas em nossa subjetividade e que se refletem através do nosso visual, ilustrações e palavras são capazes de formar opiniões e construir uma esfera pública cultural (ou contra-cultural) com funções políticas? Eu já fiz minha escolha, faço e consumo arte engajada. E você?

…………* Bacharel em Ciência Política, especialista em Sociologia Política, Mestrando em Ciência Política, guitarrista da banda Cépticos e agitador contra-cultural.
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REFERÊNCIAS

AVRITZER, L. e COSTA, S. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública: Concepções e Usos na América Latina. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 47, no 4, 2004, pp. 703 a 728.

COSTA, S. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública. Lua nova. N 36. 1995. pp. 55-65.

GOMES, W. Apontamentos Sobre o Conceito de Esfera Pública. In: MAIA, R. e CASTRO, M. C. P. (orgs). Mídia, Esfera Pública e Identidades Coletivas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

HABERMAS, J. Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações Quanto a uma Categoria da Sociedade Burguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 [1962].

 

Deise Santos
Carioca, jornalista, produtora cultural, baixista e guia de turismo. Deise Santos é apaixonada por música - principalmente rock e suas vertentes -, literatura, fotografia, cinema, além de colecionadora - contida - de vinis. Pé no chão e cabeça nas nuvens definem a inquietude de quem está sempre querendo viajar, conhecer pessoas e culturas diferentes. Idealizadora do Revoluta desde seus ensaios com zines, blogs e informativos, a jornalista tem como característica a persistência em projetos que resolve abraçar.
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