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Graphophobia: coerência orgânica traduzida em poesias (quase) inéditas de Glauco Mattoso

Glauco Mattoso lançou no dia 15 de dezembro do ano passado, em edição bem cuidada e graficamente bonita da Editora Patuá, o livro GRAPHOPHOBIA

Com exceção de ECLOGA DESIDYLLICA que saiu na revista virtual TEXTO POÉTICO (v. 13, nº 22, p 5-6, Jan/Jun – 2017) todas as demais poesias são inéditas.

Logo no início do livro nos deparamos com a força criativa do poeta. Os “títulos” do primeiro ciclo de poemas são metrificados e dão voz a um narrador onisciente. 

Nas CHARTAS ENTRE UM JOVEN E UM VELHO BARDO temos sonetos ingleses virados de ponta cabeça com 16 versos, umas das formas dos ”dissonnettos” glauquianos (sonetos com estrofes alteradas e acréscimo de dois ou mais versos). O mesmo alto grau de invenção e irreverência que apresenta nesse ciclo está presente em toda a obra.

Ao adotar a estrutura narrativa de carta, com saudação e despedida abrindo e fechando todos os poemas do referido ciclo, certamente criou para si uma dificuldade extra à composição dos mesmos, porém, como de costume, Glauco a superou com maestria.

O poeta constrói suas próprias formas fixas de modo análogo ao que fez Paulo Henriques Britto em NENHUM MISTÉRIO. Outro elemento formal que aproxima esses autores e livros é o largo uso de redondilhas e “enjambements”.

Aliás, cabe destacar que foi a partir de uma troca de ideias com Britto que Glauco começou a experimentar com a forma dos sonetos e concebeu o esquema de rimas palindrômico que utiliza em DÉCIMA DO ACRÉSCIMO AO SEGUNDO TEMPO, uma variação menos complexa, mas não menos sofisticada, da distribuição das rimas na série PITTACOS DO ANTHROPOPITHECO (segundo ciclo de poemas do livro).

O livro entrega a filiação milloriana de Glauco em PÉ CHATO DE GALHOCHA, no qual parte de uma expressão popular para, trocadilhando, ampliar-lhe o sentido, além de incluir versos que brincam com o sentido das palavras: “Então, sua botina/ apponctando, banca bota/ quando ordena uma faxina// ‘Anda, lustra a bota fina (…) “

Na mesma linha há PORTENHO PORTUNHOL PORNÔ, criativo e divertidíssimo poema. A excelente peça construída com falsos cognatos e estrutura sintática das línguas portuguesa e espanhola ecoa o mestre de “ah, essa falsa cultura!”.

AUDIODESCRIPÇÃO DA IRRUMAÇÃO lembra outro título de Glauco, o DESILLUMINISMO, onde o cego é usado para a satisfação sexual de quem enxerga.

O segundo ciclo de poemas incluído no livro, PITTACOS DO ANTHROPOPITHECO, além do criativo esquema de rimas palindrômicas chama atenção ao descrever uma história engraçada e contrabandear temas tabus como zoofilia, zombar da nossa civilidade e falar de poesia.

Na terceira série de poemas do livro o Glauco enciclopedista e inventariante aparece mais claramente nos poemas-verbetes, dispostos em ordem alfabética, das várias fobias contemporâneas. Sempre com forma impecável.

Nesse título, e assim em todos os demais da lavra do poeta, não só a forma é apurada, como os temas de fundo são relevantes e urgentes.

O livro todo atesta o que foi dito acima, porém sem estender muito o texto não se pode deixar de anotar que a série O MEDO A DEDO (o terceiro ciclo de poemas que compõe e encerra GRAPHOPHOBIA) na mão de outro poeta poderia virar um libelo vulgar pretensamente politicamente incorreto ou um discurso moralizador-vitimista enfadonho e ilegível. Glauco diverte e nos põe, rindo, para pensar. Instiga e desafia.  

Glauco Mattoso nos demonstra de modo cabal que não se calará temendo a caretice e acredito firmemente que não só escapará da maldição literária como, pegando carona na profecia do prefaciador Manoel Herzog, será reverenciado como o grande poeta-pensador que é. 

Enfim, GRAPHOPHOBIA é mais um pungente exemplo da coerência e organicidade da extensa obra glauquiana, marcada pela inventividade na forma e pela dialética da contradição no fundo. O desumanismo de Glauco está a serviço de um humanismo desrepressor.

Ler Glauco Mattoso é um ganho existencial.

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