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Mercado Negro HC: um olhar crítico sobre o passado e o futuro

Mercado Negro é uma banda cearense de bastante destaque no underground da região Nordeste por suas ótimas letras e shows intensos. Após algum tempo de inatividade eles estão de volta, cheios de garra e fúria para denunciar o fascismo tropical dos nossos dias. Abaixo, conversei com os irmãos Adriano e João, que junto com Pedro Felipe e Wellington, compõem essa ótima banda.

Entrevista por Marcelo Fernandes
Fotos de divulgação

Conte-nos um pouco sobre o começo da banda: o que os levou a criá-la, quais eram as influências musicais e políticas naquele momento?
João: A banda surgiu em meados de 1998. Na ocasião, éramos 4 amigos que queríamos tirar um som. Partilhávamos de algumas referências musicais em comum, especialmente punk, rock e começamos a ensaiar. A banda é de Maranguape, uma cidade cearense da região metropolitana de Fortaleza, localizada a 27 km da capital. Não tinha muitas opções para os jovens que queriam se engajar em atividades culturais, então decidimos encarar o desafio.
As influências musicais naquele momento eram basicamente grupos punks/ hardcore: ouvíamos de Black Flag, Ramones, Ratos de Porão a bandas de rock alternativo como Smashing Pumpkins.
Adriano: Na verdade, não eram bem influências, mas, inspirações. Na época, ouvíamos de tudo no rock, mas, na prática, tocávamos punk com forte influência das bandas nacionais.

A proposta sempre foi ser uma banda engajada?
João: Acho que nossa condição social nos direcionou para o viés crítico, e claro, era inegável a inspiração do RATM. Mas no início era uma crítica mais generalizada.
Adriano: Bom, as primeiras letras eram de protesto, sem muitas variações, mas não tínhamos envolvimento com outros movimentos sociais, de modo que a banda foi incorporando novos temas, que não envolviam, necessariamente, assuntos de política.
João: Acho que um caso bem emblemático, é a letra de “Sangue e Poeira”, nossa primeira canção autoral e que está na demotape “Quanto vale hoje uma vida humana?”.  Ela é sobre a chacina de Eldorado dos Carajás, ocorrida em 1997. Foi algo que nos impactou bastante naquele momento pois acompanhamos através dos telejornais. Essa é uma característica da banda, pensar a violência e a desigualdade a partir de uma lógica mais universal, sem perder de vista as particularidades de nossa realidade social e política.

Por falar em letras: Adriano, você escreveu a letra de “Srebrenica”, que trata do massacre de quase dez mil pessoas ocorrido na Sérvia, em 1995. O que o levou a trazer esse assunto à tona?
Adriano: na época, eu estava fazendo uma pesquisa livre sobre os conflitos na Iugoslávia e todas as questões que envolveram o desfecho. A letra é um retrato do mundo perdido e caótico que a violência e o racismo insistem em trazer à tona quando as situações são favoráveis.

No século XXI esses conflitos e limpezas étnicas têm acontecido quase que exclusivamente nos países pobres e, em alguns casos, em países em desenvolvimento, como por exemplo em Myanmar, China e Turquia, entre outros. Como vocês veem o momento político atual no mundo, que tem mostrado o aumento do nacionalismo, da xenofobia e o racismo, inclusive aqui no Brasil. Há esperança?
Adriano: É uma questão interessante. A América Latina começa com o massacre de 80 milhões de nativos. Há uma tendência fria na humanidade de fazer o outro se dobrar por ser “diferente”. O Brasil de hoje é a latência dessas pulsões negativas que não podem se exprimir através da barbárie de tempos anteriores.
João: Entendo esperança muito mais como uma possibilidade de que sempre haverá resistência e não como a solução final. Nas últimas décadas temos assistido à proliferação dos conservadorismos e dos nacionalismos diversos. Acredito que só tínhamos visto algo semelhante na primeira metade do século XX. Porém, também assistimos a uma intensificação maior dos grupos que lutam pelos direitos humanos, que fiscalizam e de alguma forma, minimizam o impacto da violência sobre esses grupos mais vulneráveis. E claro, os grupos também estão se articulando e produzindo resistência.

Ainda falando sobre o passado, mas tratando de seus reflexos na sociedade atual, temos visto em diversos países algumas iniciativas de destruir estátuas de figuras ligadas ao colonialismo, escravismo e outras formas de violência institucional. O que vocês acham dessas iniciativas?
Adriano: Não sei o motivo de as terem erguido, particularmente (risos).
João: Simbolicamente vejo como algo significativo, uma vez que mostra uma percepção crítica da história oficial construída em torno de líderes que muitas vezes escravizaram e dizimaram povos.
Adriano: É provável que isso sinalize a outras formas de iconoclastia, quer dizer, creio que o questionamento desses “heróis” pela literatura pode ter trazido às pessoas o sentimento de um mundo em que essas estátuas não fazem parte.
João: Se a história muda a todo instante, por que seus heróis precisam se manter incólumes?

As mudanças ocorrem igualmente nesse microcosmos da qual fazemos parte. Analisando o underground de 1998 e o que temos hoje, quais mudanças principais (positivas e/ou negativas) vocês observam?
João: Positivamente acho que as bandas têm um pouco mais de facilidade do ponto de vista técnico, claro, sem perder de vista a condição sócio econômica dos músicos. Mas, por exemplo, quando montamos a banda em 1998 não havia internet e tinham poucos estúdios que gravavam gêneros do rock mais pesado, isso no Ceará. Agora as coisas mudaram bastante. Hoje as bandas fazem sons, até mesmo em casa e divulgam em diversas plataformas permitindo uma divulgação maciça.
Adriano: Na época em que começamos, havia um movimento grande de bandas na capital e no interior. Creio que a coisa do coletivo se perdeu um pouco, o que levou as bandas a se adaptarem a uma tendência mais independente.
João: Acho que isso que o Adriano falou é verdade. Porém, mesmo nessa suposta independência, o coletivo prevalece. Eu sempre digo que o Do it Yourself deveria ser visto como Do it Together (risos).

Quais bandas nacionais ainda em atividade vocês curtem, independente do estilo?
Adriano: Gosto da Torture Squad. Acho que a Nervosa também fazia um bom trabalho…no geral, são as coisas de sempre, Sepultura, Ratos de Porão, etc.
João: Eu estou sempre em busca de coisas novas e tenho ouvido muita coisa interessante, especialmente no NE. Gosto muito do Rastilho, de São Paulo. Do Solstício, de Cabo Frio, gosto do Molho Negro (PA), do Violator (DF). Tem umas bandas cearenses que estão fazendo um trabalho bem bacana como Thrunda, Lixorgânico, Criminal Lie, entre outras.

João, você é autor do livro “Sóbrios, firmes e convictos: uma etnocartografia dos Straight Edges de São Paulo”.  Como foi essa experiência?
João: Então, esse livro foi resultado da minha tese de doutorado em Ciências Sociais, defendida no ano de 2011, na Unicamp. É um trabalho do qual me orgulho muito, tanto do ponto de vista teórico e metodológico, como também pela possibilidade de falar sobre um estilo de vida jovem visto com certo preconceito. Passei três anos fazendo pesquisa de campo na cidade de São Paulo, especialmente nas Verduradas. Foi ótimo poder ouvir relatos de straightedges e entender um pouco mais sobre os pontos de vistas e visões de mundo que orientam suas práticas. Vi muitos shows incríveis também, como 108, Have Heart, H20, Nueva Ética, Confronto, entre outros.

As músicas mais recentes do Mercado Negro mostram uma mudança de estilo. Vocês consideram isso uma evolução?
João: Acredito que sim. Sempre fomos uma banda que misturou sonoridades, mesmo tendo um pé fincado no punk e hardcore. Gostamos de misturar peso e velocidade com passagens melódicas, o que reflete nossas referências individuais. Eu e o Pedro Felipe somos mais do Punk, acho que o Adriano e o Wellington são mais do metal.
Adriano: O Mercado Negro é uma banda com inspirações diferentes. Mantemos, no entanto, elementos que marcam o som da banda após o lançamento do nosso segundo EP, “Guerra de Classes”. Na época, pessoalmente, eu ouvia coisas como Slayer, Biohazard e Deftones.
João: Eu incluiria o RATM e o Downset.

Quais são os próximos passos da banda? Pretendem gravar algo após a pandemia?
Adriano: Temos algumas canções prontas. Devemos gravar três ou quatro sons, mas, talvez, no próximo ano.
João: Estamos com algumas composições novas e nossa prioridade é gravar. A parte mais difícil é nos reunirmos, pois só conseguimos fazer isso nas férias, pois moro em Maceió os demais membros em Fortaleza e Maranguape. Mas, vai rolar. Quem sabe um split com o Solstício.

Meus amigos, agradeço a atenção e o tempo de vocês, e deixo o espaço aberto para suas últimas considerações:
Adriano: Quero agradecer a oportunidade, caro Marcelo, e dizer que foi um prazer conversar sobre a história da banda e os passos futuros. Abraço!
João: Gostaria de agradecer pelo convite. É a primeira vez que participo de uma entrevista com Adriano, que é meu irmão, o que é bem louco, pois por muito tempo dividimos o mesmo teto. É sempre bom ter a oportunidade de falar sobre nossas influências musicais e políticas, pois na maioria das vezes, as pessoas só conhecem a banda que está em cima do palco.  Obrigado Marcelo e Revoluta!  Sigamos fortes, resistindo aos fascismos e às injustiças que assolam nosso país!

Para conhecer:

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Para ouvir:

Bandcamp

Marcelo Fernandes
Professor de Geografia na rede estadual do RJ e faz parte das bandas Solstício, Las Calles e Bulldog Club.
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