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A música como um choque de realidade

Nascida em meio ao revival da cena punk em Teresina (PI), a Cianeto HC vem se consolidando no underground. Neste bate-papo, Heitor, vocalista da banda, fala um pouco sobre a história da formação da banda, o olhar crítico sobre diversos temas e faz um apanhado de nomes e períodos da cena underground piauiense. Confira!

Entrevista por Marcelo Fernandes
Fotos de Juliano Bode

Montar uma banda é sempre um desafio: encontrar pessoas, ver equipamentos e local para ensaiar, etc. como foi o início da banda?
Bom, a banda nasceu na periferia da zona sudeste de Teresina, no final de 2009. As rádios não traziam nada além de música descartável e sem propósito. Cansados de ouvir mais do mesmo, tentamos fazer o nosso.  Como toda banda sem grana, o começo foi bem difícil. Literalmente tocávamos com os pratos e baquetas pela metade. A grana pra ensaiar, comprar e fazer manutenção de instrumentos, placa pra gravar…era rara e até hoje é bem difícil. A banda finalmente conseguiu consolidar uma formação de 2017 pra cá, não sem antes fomentar um verdadeiro tráfico de pessoas. É complicado achar a química certa, porque tem gente que não leva a sério a parada, ou não entende que não se trata apenas de música. Da banda que surgiu na década passada, apenas Heitor, vocalista/letrista do grupo permanece até hoje. Enfim, hoje podemos dizer que tocamos em todo lugar por aqui, temos nossas conexões fora e aos poucos vamos conquistando nosso espaço no melhor estilo faça você mesmo. Parafraseando um amigo de cena, podemos resumir a tua pergunta tomando o mantra dele como referência: “Nada tem sido fácil, tampouco impossível”. Depois de 10, 11 anos nisso, ainda nos deparamos com a vontade de desistir, mas também seguimos orgulhosos do que já fizemos. Entendemos que essa sensação dúbia é o que no fim das contas nos faz felizes. Viver o underground é literalmente não saber o que esperar. E o inesperado é o que move o homem a superar os próprios limites.

Ouvindo o disco de vocês “Sociedade das Marionetes”, podemos notar que a banda parece não se prender a estilos, indo do hardcore ao skapunk com grande desenvoltura e com a metralhadora giratória da crítica a mil por hora! Entre tantos alvos há algum preferido? Por que?
Seria muito cômodo colocar Bolsonaro ou Trump na linha de tiro. São grandes problemas e crápulas titãs. Mas no fim das contas, eles são como a hidra da mitologia: Você corta a cabeça e outras duas assumem o lugar. Não se trata de atingir apenas um político, ou uma instituição, como a polícia, ou a igreja. Essas escórias do poder são uma metáfora, um recurso semântico pra atingir um inimigo silencioso, poderoso e que pode ter muitos nomes. Stabilishment, status quo, sistema…Ele atende por muitos nomes. E esse sistema manipula até mesmo nossa capacidade de ser autêntico, de ser criativo. Somos bombardeados por imagens e conceitos na tv e na internet numa velocidade que não nos permite emitir uma opinião, um parecer sobre o meio em que vivemos. E é exatamente isso que esse controle silencioso quer: Disciplinar corpos e atitudes. A criatividade é perigosa, deve ser podada como uma árvore no jardim da mansão do Chiquinho Scarpa. O senso crítico poderia confrontar essa corrupção epidêmica do estado. É por isso que querem militarizar a educação. Arrume a postura, aprenda a ser pragmático e obedeça ordens, mesmo que elas sejam injustas. Isso é claro como água, mas estamos anestesiados e não percebemos. Gostamos de pensar a música como um choque de realidade, uma injeção de adrenalina no coração parado. Precisamos mudar a nossa atitude antes de qualquer coisa.

Vocês acham que há uma certa desvalorização das bandas que não sejam do Sudeste ou Sul do país? Por que isso ocorre? Como mudar essa situação?
Com certeza. Evidentemente não vamos generalizar, mas poderíamos evocar os preconceitos oriundos de raízes coloniais, que edificaram a ideia de que o norte/nordeste não são nada além de zona de passagem, composta por semi-árido, ou mato. Inventaram o nordeste como uma zona erma, sem vida. Foi criada outra lenda em cima do fato do centro econômico do país achar que, por ter os melhores indicadores, carrega o resto do país nas costas. A capital do Brasil saiu do sudeste, mas tem uma galera que ainda hoje parece viver os anos de Belle Époque da primeira república, uma era de ouro que nada mais é que fachada. Para não desviar o foco, vamos trazer essa questão analisando o âmago do underground. Além de toda essa ideia superestimada que o sul/sudeste tem de si mesmos, eu acredito que as pessoas esquecem que ter banda, fazer show, produzir Zine, não é pra satisfazer o próprio ego. Não se trata de competição entre selos, ou batalhas de bandas. É interessante…Quando esse tipo de comportamento é constrangido e a crítica é feita, falta maturidade, leva-se a questão pro pessoal e a treta está plantada. Precisamos entender que autocrítica é necessária e que só se cresce realmente, quando todo mundo junto participa do processo. Tem selo/grupo/artista/banda, que esquece coisas básicas como viver numa comunidade. Cena não é só uma palavra bonita. É um conceito que dá sentido à vida de milhares de pessoas no mundo todo, inclusive para estes que vos falam. Tornar a cena cosmopolita, deixar o bairrismo de lado é o primeiro passo rumo à sobrevivência e a longevidade de nossa cultura subterrânea.

Conte-nos um pouco sobre a cena punk/hardcore do Piauí. Quais bandas, zines e coletivos vocês destacariam?
A cena punk daqui é datada da segunda metade dos anos 80, a partir de bandas como Grito Absurdo e Vermenoise. Aqui o gênero é mais aproximado do metal, do crossover, do que do conceito da “califórnia brasileira”, por exemplo. Nesse contexto, somo um exceção à regra. Por muito tempo, foi bem difícil distinguir punk de metal aqui, até porque os espaços de sociabilidade eram os mesmos. Hoje, muita água passou debaixo dessa ponte. Bandas como Obtus e Káfila já tem mais de 20 anos de estrada. Em síntese, podemos dividir o punk daqui em 3 fases, onde a primeira é essa Babel entre gêneros dos anos 80, os anarcopunks dos anos 90 e o revival da cena punk pós 2010, que revelou além da nossa banda, várias outras bem legais, como a Campo Minado 118, Kandover, Aloha Haole, Pancreatite Noise, Banheiro de RodoviáriaEscrotos.
Sobre os fanzines, os anos 90 concentraram a sua maioria. O “Consciência anarquista” é um bom exemplo da época. Os punks daqui foram assunto na folha de São Paulo por conta de um mutirão organizado no extremo sul de nossa cidade. De 2010 pra cá, eu destacaria o “Jardim Atômico” e os fanzines da galera da Gagau Produções, tocado pelo multitarefas Pedro Hewitt. Apesar de mais voltado pro metal, também abre espaço pro hardcore/punk. No entanto, apesar do fluxo de zines ser razoável principalmente nos anos 90, hoje se produz pouco zine por aqui.
Temos também sites made in Piauí, dedicados a falar sobretudo da música local, produzindo resenhas de nossas produções. É legal destacar o tradicional Full rock e o novíssimo Noise Land, idealizado pelo vocalista da banda Kandover, Jairo Mouzinho.
A Cianeto participou de dois coletivos, atualmente parados: O “Geração tristherezina” e o “Nuvem Negra”. O tristherezina não era voltado apenas para o punk, mas para questão da música independente como um todo. Articulado pelo artista local Valcian Calixto, foi um marco na profissionalização e divulgação de várias bandas daqui não só para o Brasil, mas pro mundo. O Nuvem Negra já era mais voltado para o hardcore. Dentre os eventos mais importantes, conseguimos trazer o Surra e produzimos nossa versão do Hardcore contra o fascismo, concatenados com o restante do país. Outros caras que merecem destaque, residem no Caverna produções, QG da banda Escrotos, que atua gravando ótimas bandas e organizando eventos também. Enfim, nos viramos do jeito que dá.

 

Em “Lunga” vocês cantam: “Não acredite no Estado. Extermínio de papel passado. É gaiola inafiançável. É justificar o injustificável.” Como vocês veem o momento político atual do país?
Catastrófico pra não dizer o mínimo. Permitimos que uma piada pronta se tornasse presidente. A sensação é de estar numa nau direcionada a um iceberg de cloroquina, sem timoneiro, sem leme e sem possibilidade de salvação. Esse canalha é a representação ideal pro questionamento do filme “Ele está de volta”: O que aconteceria se Hitler voltasse ao mundo atual? A resposta é deveras aterrorizante. Pior que um genocida no poder é ver a quantidade de apoio que ele tem. É duro admitir, mas o Bolsonaro é o reflexo do que o brasileiro – sobretudo médio – tem por dentro. Corrupção, racismo, misoginia, misantropia… De primeira nos iludíamos e tentávamos ver nessa gente que o apoia a alienação. Mas depois de ver acampamentos de fascistas, marchas no estilo KKK, percebemos que na verdade não existe humanidade alguma nessa gente. Não é possível não se arrepender do voto depois de tudo que foi dito e feito. São 65 mil mortos. Essa Necropolítica precisa acabar. Nem a selva é tão cruel.

Vocês têm uma música chamada “Vida Líquida”, que é um termo cunhado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman para analisar as relações sociais fugazes e superficiais que marcam os dias de hoje. Na opinião de vocês o underground reproduz essa vida líquida ou ele é verdadeira e profundamente contracultural!
Vocês sacaram a referência! Acreditamos num autêntico, genuíno, politizado, barulhento e participativo underground. Esse nunca morrerá, ainda que viva momentos de crise como esse vivido hoje. É difícil falar em contracultura, num contexto tão extremado da ideia de cultura. Parecemos viver muito mais numa guerra “todos contra todos”, do que um “nós contra eles”, sabe? Não está mais tão cômodo delimitar referenciais. Os inimigos são intangíveis e travestem mil faces distintas. Os perigos da relativização tem transformado discurso de ódio em liberdade de expressão. A noção de Liberdade é confundida com libertinagem. Democracia virou falar merda e não responder por isso. O sistema tem nos dividido, nos colocado uns contra os outros. E tem deturpado a essência do underground.  Mas se não perdemos de vista que a nossa força reside na originalidade, na autenticidade e a empatia com o próximo, sobreviveremos uma vez mais.

Agradeço a atenção e o tempo de vocês, e deixo o espaço para suas palavras finais:
Gostaríamos apenas de parabenizar a iniciativa da página e agradecer a oportunidade. Mantenham-se hidratados, usem máscara, respeitem o distanciamento social e sempre que possível saiam da zona de conforto. Como diria Howard Jacobs, Rebeldia requer pensamento!

Formação atual da banda:

Heitor matos: Vocais
Lucas Barbosa: Guitarra
Juliano Bode: Baixo
Diego Felipe: Bateria

Para conhecer a banda:

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Para ouvir:

Bandcamp
Spotify

Para assistir:

Marcelo Fernandes
Professor de Geografia na rede estadual do RJ e faz parte das bandas Solstício, Las Calles e Bulldog Club.
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